terça-feira, novembro 08, 2011

Imagem (Baseado em uma obra de mesmo nome, de Cecilia Meireles)

Meus pés já cansados subiam a montanha íngreme e pedregosa, hesitando a cada passo. Era um dia quente de verão, abafado, sem vento, daqueles que você pede com todas as forças que as nuvens carregadas tapem o sol e água despenque do céu.

Eu caminhava sozinha. Mas não por muito tempo.

Ele surgiu de repente, seus olhinhos tristes me observavam como se gritassem por colo e um pouco de água. Pobre animalzinho. Seu pelo era tão ralo, onde ainda o possuía, que se lhe viam luzir as pulgas sobre os arcos das costelas. Só que não era um gatinho comum, além de débil e mal tratado, era preto. Os meus sentimentos entraram em conflito. Tantos, tão misturados, falavam ao mesmo tempo dentro de mim. O medomurmurava cauteloso: “ Deixe-o aí, lembras de todas as histórias supersticiosas. Melhor prevenir.” A vaidade, tão ignorante, falava: “Melhor é seguir caminho. Ele sujaras toda tua roupa e ainda te contaminaras com pulgas ”. A culpa, amedrontada com o que poderia acontecer com o pobre, gritava: “Não queres viver com a ideia de que deu-o de mão beijada para a morte!” E o amor, tão piedoso e verdadeiro, chorava: “Ele é um pobre inocente, nada fez de mal a ninguém, apenas pegue-o e cuide-o”. Mas o medo e a vaidade eram tão severamente autoritários.

Segui meu caminho, sem olhar para trás, porém ao olhar para o lado, vi sua pequena imagem aos meus pés, seguindo-me, tentando acompanhar com fervor meus passos acelerados, que diminuíram instantaneamente. Será, que de algum modo, ouvira as lamúrias do amor? Deixei que viesse comigo, até onde agüentasse.

Quem seria tão cruel a ponto de abandoá-lo em um lugar tão deserto, onde chances nenhuma de vida teria? É triste pensar que existem pessoas assim, talvez, seu antigo dono, fosse um supersticioso, daqueles tão crentes que evitava até passar perto de escadas, e que morreria se, por infelicidade, quebrassem um espelho. É, pessoas assim existem. Talvez o pequeno pudesse ir comigo até o vilarejo, onde, provavelmente haveria uma senhora com coleções de gatos, que não se importaria em adotar mais um, ou até mesmo, eu poderia adotá-lo. A ultima idéia era tão improvável quanto à chuva em meio essa seca.

Trotava, sempre ao meu lado, vezes dava alguns pulinho para desviar de pedras maiores. Vários tombos de cara caiu o desajeitado, fazendo de meus lábios escaparem sorrisos. O amor voltou a falar-me com compaixão: “Não é bom ter uma companhia, não te sentes menos sozinha e com mais animo para subir a montanha? Imagina se o tivesse contigo sempre?” E, como se escutasse novamente, o que o amor dizia, o gato miou. Um miado engasgado, quase sem forças, que me fez parar. Ele, porém, seguiu, e ao se dar por minha ausência, olhou para os lados, voltando ao meu alcance. Agachei-me, estendi-lhe minha mão. Sua pequena cabeça encaixou-se tão perfeitamente a ela, que seus olhinhos tristes se fecharam, muito baixo podia se escutar um ronronar, como um quase silencioso pedido de ajuda muito esperançoso. Então, a vaidade gritou, tão autoritária e repulsiva, que me fez pular: “Afasta-te deste bicho pulguento!” O gatinho saltou assustado.

Continuamos nosso caminho. “Continuamos”? Quer dizer que agora já estávamos juntos? Eu podia ver cada vez mais a esperança em seus olhinhos precisados. Lembrei-me de tantos outros bichinhos que eram todos os dias largados a beira das estradas para morrerem, ou atropelados, ou de necessidades. Sorte daqueles que morriam logo. Alguns até tentavam voltar para casa, e era nessas tentativas que a morte os encontrava primeiro, como pacificadora, resgatando-os do sofrimento de não ter um lar. O quão triste é para eles viver sozinho? Será que é como para nós humanos? Não. Com certeza eles sentem mais. Nunca abandonariam seu dono, nem na pior das hipóteses.

Perdi-me em meus pensamentos, que giravam mais rápido que um tornado, sem saber ao certo o que fazer. As várias vozes continuavam gritando ao mesmo tempo. Deixando-me num completo escuro. Sem uma luz. Sem um caminho. Seria tão idiota me sentir assim por causa de um gato miserável? Por que fora eu que o encontrei, e não qualquer outra pessoa? “Não foi você que o encontrou, foi ele que te escolheu.” Alguém disse com paciência na minha mente, não consegui identificar qual das vozes era. Talvez fosse o amor, tão cheio de compaixão que criava ilusões. Eu não era uma pessoa tão boa para ele me escolher. O que tinha eu de mais? Era tão cheia de sentimentos ruins como qualquer outra pessoa. Tinha repulsa de tocar-lhe, ao mesmo tempo em que queria abraçar-lhe forte, cuidá-lo, para que nunca mais sofresse. Deus, que confusão triste. Por que me fizeste assim, tão inconstante com o que sinto? Eu sou ora pena, ora ignorância. Ora certeza, ora duvida. Mas mesmo assim eu seguia, e ele, quase alegre, seguia comigo.

Quase. Quase alegre. Porque de repente não estava mais lá. Deixara-me. Sumira de minha vista. Parei, resistindo ao impulso de chamá-lo. Mas como? Se nem ao menos um nome o pobre tinha? Ou será que tinha? Não importa. Onde fora parar? E a culpa tomou conta de mim. Eu nunca mais tornaria a vê-lo, simplesmente sumiu com o vento. Por que agora? Estávamos quase em casa. Deixou-me como as folhas deixam as árvores quando chega o outono. Talvez tenha parado para descansar, tão exausto estava da caminhada, e eu nem ao menos o esperei, assim, me perdera. A culpa me veio com mais força, atingindo-me como uma adaga bem ao meio do peito: Eu não fiz nada para ajudá-lo. Melancolia, solidão, saudade, todas ao mesmo tempo tomaram conta de mim. Mesmo assim segui, sozinha. O espírito do amor chorando dentro de mim, enquanto o medo, com todo seu egoísmo, dizia com rancor: “Foi melhor assim.”

Nada mais me restou daquele dia. A não ser a lembrança do gatinho que tão sofredor viu em mim a ajuda. Ajuda que o neguei. Fazia agora um bom tempo. Achei que o tinha esquecido, mas não. Essa tarde ao subir novamente a montanha deparei-me com um filhote de cachorro. O primeiro sentimento que gritou foi a culpa: “Agora podes te redimires”. O amor veio logo em seguida: “Não faça isso por redenção, faça por mim”. Os outros? Não os dei ouvidos. Lembrei da voz, aquela que não consegui identificar, que uma vez me dissera: “Não foi você que o encontrou, foi ele que te escolheu.” Talvez essa tenha sido a vóz da sabedoria. Aquela que faz agirmos conforme nossos valores. Sabedoria e inteligência, não são a mesma coisa. Quem é inteligente, teme, porque sabe que lhe fará mal. Quem é sábio, enfrenta o medo. Dessa vez não hesitei. Não por redenção. Mas por ele, o tão sábio amor.

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